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A democracia como ela (não) é

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Quem se arriscaria a ir contra uma empreitada democrática?

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Sandra Eloisa Pisa Bazzanella*

Sandro Luiz Bazzanella**

Em diversos espectros políticos a defesa da democracia parece argumento coringa quando se trata da legitimação de discursos. Um projeto político, social e mesmo econômico que se diz comprometido com a democracia, a priori não poderia ser um mau projeto: quem se arriscaria a ir contra uma empreitada democrática? Ou ainda, quem cometeria a insanidade de se apresentar comprometido com um projeto autoritário, ou de orientação totalitária? Até militares portadores de constelações estelares e, seus subordinados capitães sem estrelas planejam golpes de estado sob a justificativa de “salvar a democracia”. Assim, em nome da democracia encampam-se atos antidemocráticos. Ao mesmo tempo, os discursos que recorrem a esse regime de governo pouco se preocupam em defini-lo e explicitar à população o que dizem quando afirmam defender a democracia. Do grego demos = povo + kratos = governo, a democracia pode ser compreendida como um governo do povo. As experiências históricas mostram, entretanto, que ela assume uma série de  nuances, de modo que os discursos comprometidos com esse ideal de governo dos bens públicos, do espaço público devem informar quais os contextos de exercício democrático a que se referem.

Isto porque a democracia não é uma forma de governo imutável. Não é forma política fixa, boa ou má, e transcendente à ação humana. Pelo contrário, ela é humanamente construída (e destruída), fortalecida (e fragilizada), e pode, portanto, assumir tantos contornos quanto forem possíveis às configurações sociais e institucionais, que elegem a democracia como forma política e de organização da sociedade. Significa também que ela não é garantida, tampouco é a garantia de uma sociedade dita “justa”. Isso porque a afirmação da democracia como forma de governo (muitas vezes advinda da resistência a movimentos violentos, autoritários e opressores), nem sempre vem acompanhada da conquista de pautas que garantam as condições para o exercício democrático por excelência.

Nesta direção, é importante ter presente que as democracias representativas modernas se constituem a partir da ascensão das sociedades burguesas que primavam e primam pela liberdade de comércio, de indústria e, sobretudo pela necessidade de garantias do regime de propriedade e de acumulação de capital realizada majoritariamente por meio da exploração e expropriação do trabalho humano e social. Ou seja, a energia repressiva necessária à reprodução do modelo burguês de sociedade era de tal monta, que para legitimá-lo era preciso fazer concessões às classes trabalhadoras. É neste contexto que  se apresentam as democracias representativas liberais burguesas, como regimes de governo que admitem certas pressões sociais, bem como afirmam direitos sociais necessários a manutenção de uma certa “ordem pública” garantidora da propriedade e da acumulação do  capital.

Isto é, a democracia se apresenta enquanto forma de governo, e enquanto forma nem sempre determina o conteúdo das políticas públicas, econômicas, internas e externas a serem exercidas pelo e no país. Quer dizer, representa na medida em que, no caso das democracias representativas como no Brasil, os eleitores elegem os políticos que deliberam tais assuntos. Mas, ao mesmo tempo, sobretudo nas últimas décadas do século XX e, nestas primeiras décadas do século XX, a invasão da política por interesses privados representantes de uma economia de mercado predatória em relação ao que é público tem se mostrado tão poderosa quanto o voto popular, fazendo questionar a representatividade proposta pelo sistema. Isto é, diferentes governos (como é o caso de Bolsonaro e Lula) negociam as mesmas pautas com os mesmos grupos de interesse privado – embora, no caso do primeiro, não haja qualquer resistência ao desmonte de políticas sociais, ao estabelecimento de um incipiente estado de bem estar social, ou mesmo em relação ao entreguismo da riqueza nacional ao setor privado nacional e internacional.

Significa dizer que entre a teoria do que deve ser a democracia e o modo como ela é exercida existe mais do que uma tênue linha. Existe um abismo perpassado pelos interesses de classes, pela força das injustiças históricas não revistas, e, recentemente, pela desinformação pública e embrutecimento do debate político, povoado por questões de teor moral e religioso.

A noção de que a democracia representativa é humana e socialmente construída e, portanto, jamais é garantida, ou pode promover garantias é corroborada por dois eventos recentes na dinâmica cultural, social e política brasileira. Em primeiro lugar, trata-se do lançamento do filme Ainda Estou Aqui, de direção de Walter Salles. Ao apontar a história do deputado Rubens Paiva, morto pela ditadura implantada em 1964, o filme rememora nos telespectadores não apenas os horrores da ditadura civil-militar brasileira, mas também o fato de que o regime democrático liberal que procurava articular interesses burgueses nacionais e demandas trabalhistas e sociais num projeto de desenvolvimento nacional vivido até 1964 não impediu que forças civis, empresariais, políticas, religiosas e militares se organizassem na direção contrária. Mais que isso, não impediu que as garantias constitucionais fossem abolidas e a livre manifestação de opositores, senso comum nas democracias contemporâneas, fosse motivo de perseguição, tortura, e morte.

O filme, na medida em que rememora parte da barbárie cometida pelos militares, remete também às empreitadas recentes relacionadas à ditadura. As pressões, senão perseguições políticas desencadeadas por grupos de interesses enfrentadas por Dilma Rousseff ao constituir uma comissão da verdade que investigasse as barbáries (prisões ilegais, torturas e morte de civis) cometidas por militares, que ao longo de 20 anos permaneceram vigentes na dinâmica do poder no Brasil são manifestações de violência e barbárie característica do ethos escravocrata presente na mentalidade de setores dominantes da sociedade brasileira. Ainda nesta direção é preciso lembrar do escárnio aos vitimados pela ditadura empreendido no discurso de Bolsonaro, entre outros parlamentares durante  a vergonhosa seção na Câmara dos Deputados que decretou o impeachment da ex-presidenta, sintomáticos de um país, e de seus representantes políticos, cujo compromisso com a democracia permanece apenas em âmbito discursivo.

O segundo elemento que remonta à fragilidade da democracia são as recentes descobertas de planos de golpe de Estado e assassinato (!) do então presidente eleito (Lula)  e o vice (Alckmin), bem como de membro do Supremo Tribunal Federal (STF). A tentativa de golpe, ao que as investigações apontam, organizada por militares e parte do núcleo político de Bolsonaro, poderia instaurar novamente um estado de exceção, ameaçando as garantias constitucionais conquistadas com o sangue dos que resistiram à barbárie ditatorial dos anos 1960 a meados dos anos 1980.

Esses exemplos apontam que a democracia representativa brasileira não é necessariamente uma democracia liberal representativa suficiente diante dos anseios populares que poderiam legitimá-la. Seguramente esta a milhas de distância  de se apresentar participativa e popular. Mas, se apresenta como democracia burguesa, liberal, representativa. Representa majoritariamente os interesses dos setores sociais privilegiados, interesses  econômicos de mercado. Assim, os discursos em defesa da democracia se apresentam como legitimação do sequestro promovido pelos interesses de grupos privilegiados do Estado em detrimento de possíveis e necessários  compromissos com o desenvolvimento humano e social em âmbito nacional. É uma democracia cujo fundamento é o permanente estado de exceção. Ela pode ser suspensa quando grupos, por ironia apoiados por parte da população,  decidem que a representação por parte de governantes de interesses populares não mais serve à manutenção dos seus privilégios, de seus interesses. Isto é, não há aviso prévio de que a democracia será aviltada para impetrar um golpe de Estado, e para isso  não parece necessário mais do que meia dúzia de corajosos golpistas e uma massa de apoiadores insuflados que não hesitam em, “democraticamente”, reivindicar um sistema que oprima, ou mesmo restrinja as possibilidades de manifestação democrática.

Acompanhada das notícias envolvendo o plano de golpe e da rememoração da ditadura civil-empresarial e militar de 1964, inúmeras tem sido as manifestações na direção da punição das tentativas golpistas. Seja o não anistiamento dos criminosos e torturadores, seja a rápida investigação sobre o plano golpista de Bolsonaro e derivados, o debate público parece povoado de discursos e medidas que visam punir os culpados e, por vezes, talvez compensar os vitimados.

Em que pese o processo judicial que envolve essas reivindicações e que deve estar amparado nos preceitos jurídicos do Estado democrático e de direito (como vimos, conquistado a duras penas), trata-se também de chamar atenção para outra variável que deve estar em discussão nos fóruns públicos, a fim de que experiências autoritárias não se repitam, e a fim de que a democracia brasileira passe a efetivar uma experiência institucional a altura dos desafios sociais presentes na atualidade. Ou seja,  é necessário investigar o que faz com que a sociedade brasileira esteja, ao longo de seu percurso da Colônia de exploração à República em suas diversas fases, tão facilmente sujeita a empreitadas antidemocráticas. Necessita-se compreender, à luz da história política e social nacional, os aspectos do passado escravocrata, oligárquico, patrimonialista e coronelista que permanecem vigentes na política. Quais as dinâmicas que, “quase naturalmente”, submetem os governos eleitos a negociações com o chamado “centrão”, representante das oligarquias rurais e urbanas desde outrora à atualidade, bem como especuladores nacionais e internacionais que sufocam o Estado em suas iniciativas sociais e o fortalecem em seu “legítimo direito” à violência contra as massas de trabalhadores, sejam eles informais, com contratos de trabalho intermitentes, temporários, precarizados, quando estes reivindicam com organização social a afirmação de direitos, ou até mesmo quando resistem a perda de direitos humanos e sociais? Qual a dívida histórica com poderosas famílias e corporações que perpetuam seus descendentes em cargos públicos, na melhor expressão do patrimonialismo? Trata-se de compreender por que, considerados esses aspectos já elaborados por inúmeros teóricos, a sociedade brasileira ainda não pôde assumir outra configuração. Ainda nesta direção se pode perguntar: por que as classes trabalhadores permanecem submetidas à dinâmicas de exploração, acessando, vez ou outra, garantias trabalhistas facilmente revogáveis? Por que permite-se que a educação pública, instrumento de desenvolvimento local e nacional e emancipação dos cidadãos, esteja comprometida simplesmente com a reprodução de mão de obra não instruída técnica e intelectualmente?

Este tipo de movimento só pode ser empreendido, entretanto, retirando-se da democracia os adornos atribuídos por quem vê no exercício democrático um fim em si. Significa compreender que o exercício democrático, por si mesmo, pode levar à barbárie civilizacional quando a democracia é minada por desinformação, pelo uso agressivo da linguagem que conforma o discurso político. O voto, que no contexto da democracia liberal representativa se apresenta como direito e dever do cidadão, torna-se, nesses casos, expressão de indivíduos cujas escolhas são direcionadas em princípio por jogadas midiáticas, de marketing e profusão de desinformação via redes sociais.  Significa também reconhecer, ao mesmo tempo, que parte do sentimento antidemocrático não é fruto da mera falta de informação, mas da deliberação própria de indivíduos minados de preconceitos de toda ordem e que, portanto, justificam o autoritarismo de suas propostas políticas na necessidade de conformar uma sociedade “ideal”.

Significa que a luta a ser empreendida por setores que visam “defender a democracia” deve ser uma luta, sobretudo, por justiça social. Isto é, por um contexto no qual as deliberações individuais sejam bem informadas pois os indivíduos possuem condições intelectuais e materiais de acesso e análise de informações. Não significa que as decisões serão uniformes porque todos os indivíduos refletirão do mesmo modo, mas sim que as divergências que compõem o campo democrático por excelência serão pautadas em concepções e informações de mundo que correspondem à realidade histórica e social brasileira e mundial. Ao mesmo tempo, é tarefa dos setores comprometidos com a experiência da democracia a luta pelo fortalecimento de movimentos que encampam e praticam a essência democrática: a participação popular. Acima de tudo, trata-se de devolver a política ao uso comum, comprometida com o debate responsável em torno da primazia dos interesses públicos e sociais e, por decorrência lógica e política de devolver ao uso comum a democracia em sua forma socialmente participativa.

Sandra Eloisa Pisa Bazzanella é estudante de Filosofia

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