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A Cidade e as Serras

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A problemática urbana

Eça de Queirós, ícone do Realismo, impactou a sociedade portuguesa do século XIX e início do XX com seus enredos que escancaravam os malefícios da elite e do clero. Além disso, evidenciou que, em famílias tradicionais como os Maias, também há desvios de conduta segundo os preceitos moralistas.

Em A Cidade e as Serras põe em xeque a problemática urbana que, ao contrário do que muitos acreditam, não é uma discussão contemporânea, uma vez que, em 1901, ele publicou essa narrativa que compara as vantagens de se viver bucolicamente numa serra ou na capital francesa. E, muito antes disso, os escritores do Arcadismo estavam exaustos da dinâmica citadina e idealizavam uma vida tranquilamente campestre.

O narrador descreve as peripécias de Jacinto que, oriundo de família nobre, é acostumado com a vida luxuosa em Paris. A princípio, sente ojeriza de uma rotina no campo, não obstante seu amigo perceber que ele é infeliz, como vemos no excerto abaixo:

Nenhuma curiosidade ou interesse lhe solicitava as mãos, enterradas nas algibeiras das pantalonas de seda, numa inércia de derrota. Anulado, bocejava com descoroçoada moleza. E nada mais instrutivo e doloroso do que este supremo homem do século XIX, no meio de todos os aparelhos reforçadores dos seus órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as forças universais, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos séculos – estacando, com as mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão mole de um bocejo, o embaraço de viver! (QUEIRÓS, 1996, p.75).

Os circunlóquios de ambos direcionam Jacinto a mudar sua percepção, na medida em que seu amigo elenca as consequências da modernidade urbana, como o insaciável desejo de consumo, a falta de privacidade, a extravagância e a banalidade, isto é:

Assim, meu Jacinto, na cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela cidade! (QUEIRÓS, 1996, p.79).

Logo, muito a contragosto, o protagonista aceita ir passar uma temporada na serra. Os resultados são imprevisíveis, pois ele se encanta com a atmosfera bucólica, percebendo que todos os anos em que viveu em uma metrópole, todas as viagens urbanas que realizou, todos os livros que lera e a educação primorosa que recebera não lhe proporcionaram a contemplação inédita que a natureza oferece, na qual cada folha de cada árvore é genuína e é um convite poético, porque não se limitam às formas padronizadas das cidades.

Dessa forma, ele recobra a saúde, a criatividade e o ímpeto de vida que fora ceifado pelo furor inebriante de Paris. Mesmo voltando à Cidade das Luzes, resolve se radicar na serra portuguesa, constituir família e ter como filosofia de vida o pastoralismo.

Além disso, depois de estabilizado no campo, Jacinto observa os problemas da falta de modernização do mesmo, e tenta conciliar seu respeito ao estilo tradicional, e adaptar algumas inovações que vivenciara na França. Ou seja, concretiza a dialética do campo x cidade que é tema central de toda produção literária de Eça, culminando neste que é seu último romance publicado.

É importante destacar que as descrições paisagísticas do autor fazem com que o mais metropolitano dos leitores se enternece e tenha desejo de se embrenhar nos campos, como é constatado em:

A tarde adoçava o seu esplendor de estio. Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes das flores silvestres. As ramagens moviam, com um aceno de doce acolhimento, as suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhada cantava, num alvoroço de alegria e de louvor. As águas correntes, saltantes, luzidias, despediam um brilho mais vivo, numa pressa mais animada. Vidraças distantes de casas amáveis flamejavam com um fulgor de ouro. A serra toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira (QUEIRÓS, 1996, p.224).

Ao ler essa obra, me veio à mente a questão do pêndulo histórico, ou seja, ora a ascensão, ora a latência de certos temas, ideologias e acontecimentos, pois o mote de uma vida simples e sábia no campo em contraposição à voracidade e futilidade das cidades, acompanha as narrativas desde a Antiguidade. Eça de Queirós, após os Árcades, o retoma nos primórdios do século XX. E, nós, no início do século XXI, não estamos fazendo o mesmo, com o desejo que a grande maioria dos citadinos tem de adquirir uma casa no campo ou na praia para, nos momentos de lazer, fugir da cidade para estar em comunhão com a natureza?

(QUEIRÓS, Eça. A Cidade e as Serras. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996).

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