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 Obra recebeu o Prêmio Jabuti de 2020

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 A obra “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior, além de ter recebido o Prêmio LeYa, em 2018, ganhou o Prêmio Jabuti de 2020, na categoria melhor romance literário. Quem o ler, não só concordará com esse predicado atribuído por um dos mais consagrados concursos do país, como verá que é um livro que já nasceu um clássico. E isso não se refere a ser padronizado, muito pelo contrário, mas porque o autor conseguiu a rara combinação de compor uma obra que abarca vários narradores, num enredo altamente lírico, de leitura agradável, num estilo cinematográfico, no qual o leitor se envolve e, ao final dos capítulos, anseia pelo fluxo da história, além de traçar importantes denúncias sociais. Ademais, o livro é uma verdadeira aula de História, mostrando a triste sina dos descendentes de escravos e, sobretudo, das mulheres negras subjugadas ao regime patriarcal.

A priori, o livro narra, de uma maneira metafórica e poética, a história de duas irmãs, filhas de negros que vivem em regime escravocrata num sistema latifundiário e que, num acidente de infância, uma perda a língua, passando a depender da outra para externar suas palavras silenciadas:

Uma seria a voz da outra. Deveria se aprimorar a sensibilidade que cercaria aquela convivência a partir de então. Ter a capacidade de ler com mais atenção os olhos e os gestos da irmã. Seríamos as iguais. A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar (VIEIRA JUNIOR, 2018, p.24).

À medida que lemos, vemos que é a história do Brasil sendo retratada, isto é, o contraste entre o arcaico e o moderno que perpassa nossa sociedade, a história de todos os silêncios, de todas as mulheres que, de uma forma ou de outra, têm seus pensamentos e vontades ceifados.

Outro tema presente em “Torto arado” é o do conflito das gerações, que se dá em dois segmentos. O primeiro, altamente positivo e comovente, é que o pai das protagonistas Bibiana e Belonísia, ciente de sua condição de descendente direto de escravos, percebe que a única maneira de ajudar com que sua prole tivesse algum tipo de ascensão social seria através do letramento. É o que vemos no excerto abaixo, num dos fragmentos mais belos desta obra e um dos mais emocionantes que já li:

[…] queria muito que seus filhos de sangue e de pegação tivessem estudo e pudessem ter uma vida melhor do que a que tinha. Essa era a razão de todo o esforço que meu pai fez para que tivéssemos um professor e, percebendo que não era o suficiente, uma escola. Meu pai não era alfabetizado, assinava com o dedo de cortes e calos de colher frutos e espinhos da mata. Escondia as mãos com a tinta escura quando precisava deixar suas digitais em algum documento. De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a escrita e a leitura dos filhos o que perseguiu com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê, acharia que eram os bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que esse era o bem que mais queria poder nos legar (VIEIRA JUNIOR, 2018, p.66).

Outra evidência das divergências entre as gerações é que, justamente por suas filhas serem letradas, uma delas começa a se inquietar com as injustiças que seus consanguíneos padecem, buscando meios de combater o sistema escravista no qual vivem. Os anciãos, muito embora também desejem mudanças, temem por represálias, enquanto alguns jovens idealizam ser proprietários das terras nas quais trabalham. Todavia, inseridos num sistema segregador, em que o coronelismo prevalece, infelizmente não há concretização desses objetivos:

Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas. Era um desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo o que fazíamos. Com o passar dos anos esse desejo começou a colocar em oposição pais e filhos numa mesma casa. Alguns jovens já não queriam permanecer na fazenda. Desejavam a vida na cidade. […] Queremos ser donos de nosso próprio trabalho, queremos decidir sobre o que plantar e colher além de nossos quintais. Queremos cuidar da terra onde nascemos, da terra que cresceu com o trabalho de nossas famílias (VIEIRA JUNIOR, 2018, p.187).

O autor também retoma, de uma maneira muito genuína, a fábula do Filho Pródigo. Neste caso, é uma filha que, engravidando do primo, resolve partir, deixando dilacerado o coração da irmã que necessitava dela para se comunicar. Mas, assim como no clássico conto bíblico, quando a rebelde regressa, é motivo de alegria: “Durante algum tempo, pensei que pudesse haver uma ruptura entre nossas famílias, mas o perdão aflorava da benção que poderia ser o retorno de alguém de qual somos parte” (VIEIRA JUNIOR, 2018, p.131).

Há também denúncia sobre a violência praticada contra as mulheres, especialmente a doméstica, alimentada pelo sistema misógino no qual as meninas eram educadas para servir ao esposo, e suportar todos os maus-tratos em nome de um acordo social. Um exemplo é uma das protagonistas da narrativa, a Belonísia, que casa-se muito jovem com um alcóolatra que a trata como serviçal:

Sabia que, mesmo depois de muitos anos, carregaria aquela vergonha por ter sido ingênua, por ter me deixado encantar por suas cortesias, lábia que não era diferente da de muitos homens que levavam mulheres da casa de seus pais para lhes servirem de escravas. Para depois infernizarem seus dias, baterem até tirar sangue ou a vida, deixando rastro de ódio em seus corpos. Para reclamarem da comida, da limpeza, dos filhos mal criados, do tempo, da casa de paredes que se desfaziam. Para nos apresentarem ao inferno que pode ser a vida de uma mulher (VIEIRA JUNIOR, 2018, p.136).

Nessa dinâmica iníqua, a única forma de se desvencilhar do companheiro é com a sua morte. Mesmo assim, as lembranças amargas tendem a continuar a tortura praticada outrora, como vemos abaixo:

O alívio ao saber que ele havia morrido. O túmulo que jazia em ruína, cercado de mato, onde você não teve desejo de pôr as mãos uma única vez. Não por rancor, nem por descaso, mas por entender que aquele foi um erro que deveria ser suprimido de suas lembranças em definitivo, mesmo que a memória frustrasse seu querer (VIEIRA JUNIOR, 2018, p.246).

O sofrimento é o elo entre os habitantes do povoado em que transcorre o enredo, é a morada de todos, o que os assemelha e os identifica, com o que é possível ser empático. Seja o sofrimento das mulheres maltratadas, seja a discriminação racial, a exploração laboral, ou o abandono social e familiar: “Sofrer, esse sentimento difícil de exprimir e rejeitado por todos, mas que a unia de forma irremediável a todo seu povo. O sofrimento era o sangue oculto a correr nas veias de Água Negra” (VIEIRA JUNIOR, 2018, p.247).

(VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2018).
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