sábado, 20

de

abril

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2024

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Fantasmas dançantes das noites de tempestade

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Envoltos em diáfanos mantos eles começam a sua dança, que nunca cessa de ser dança

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Plácidas águas do lago a refletir a luz de uma lua impossível. Do avarandado que circunda a cabana, impassível desfruta da calmaria que a envolve. Calmaria interior depois de tantos turbilhões em sua alma. Calmaria num céu sem nuvens. Calmaria demais, pensava.

Refúgio escondido do mundo no alto mais alto das serras que rodeiam sua vila. Local ameno nos tempos de calor. E de intenso frio nos meses de inverno. Não viera até ali para fugir do mormaço das planícies. O isolamento em meio ao bulício da cidade revolvia o seu eu. Na solidão rodeada pela natureza tentaria terminar o romance que estava escrevendo. Terminar de ler o que estava lendo. Terminar de revolver suas entranhas carregadas de uma saudade sem fim. Terminar…

Leve manta sobre os ombros. Pés descalços sobre tábuas desmudas. Um livro jogado na poltrona onde estivera sentada. A taça do vinho rubro abandonada sobre a mesinha. E as suas elucubrações a lhe acompanhar…

Noite tépida demais para aquela estação. Noite tépida demais para aquelas altitudes. Nenhum som de ave noturna a quebrar o silêncio. Águas imóveis no lago. Nenhum ruído de ondas a bater no píer onde está amarrado o pequeno bote…

E então ela soube. Num ímpeto, num átimo ela soube. Eles estão vindo. Estão vindo com a tempestade… Porque as tempestades sempre chegam assim…

Uma força superior prende-a junto à grade da varanda. Apareceram primeiro, em forma de um risco vertical que clareou todo o horizonte e por um segundo delineou o contorno das colinas além. O ruído que se seguiu, algum tempo depois, era muito débil. Estão longe ainda, pensou.

Como um pintor que, num repente, passa aguarrás sobre a paisagem que acaba de colocar em uma tela, mudam-se as cores do céu. Some o dourado da noite do lago, o dourado dos raios que a lua nele jogava. Somem estrelas na abóboda celeste. O plúmbeo avança com a fúria do vento. E o negror da noite cavalga sem cessar.

E então ela os vê. Envoltos em diáfanos mantos eles começam a sua dança, que nunca cessa de ser dança. E então ela os vê. À luz dos relâmpagos que clareiam o espaço nu à sua frente. Ela os vê, envoltos em diáfanos mantos, como se dançassem ao ritmo dos tambores que se encontram no seio das nuvens.

Poucos são, neste momento, os fantasmas que irrompem em meio aos primeiros relâmpagos que, como esquis aquáticos, pelas águas do lago deslizam, numa dança carregada de espumas.

Ela sempre soube que não importava para onde fosse, os seus fantasmas apareceriam para atordoá-la… Ou seria para dizer-lhe que ela estava viva?

Não, os fantasmas não chegam todos de uma só vez. Porque assim como as tempestades que se formam nas distâncias dos espaços siderais e mostram-se aos poucos, assim chegam eles na noite sem luz de estrelas, sem luz de lua.

A luz que emana das lâmpadas que contornam o lago, e que se estendem além, esmaecem-se atrás de uma líquida cortina. Seus reflexos parecem naufragar na névoa das finas águas que aos poucos as nuvens vão espargindo. E em torno delas e sobre elas fantasmas dançam entre as sombras, fantasmas dançam entre a chuva, fantasmas dançam em meio às árvores que dançam em meio às luzes que em meio delas dançando se infiltram.

O ribombar dos trovões que agora parecem explodir dentro das águas do lago, que agora parecem explodir em frente à varanda, fazem tremer a viga onde ela, atônita, se apoia. Mas não fazem tremer os fantasmas que, sobre as pedras que reluzem a cada relampaguear, continuam sua dança que não cessa de ser dança, que não cessa de ribombar.

Ela sabe que os seus fantasmas têm cores, que seus fantasmas têm sons, que muitas histórias os seus fantasmas têm para contar. Fantasmas que lembram cirandas de um tempo de sonhos.

Rugem as águas do lago. Ondas sem fim, que ventos tonitruantes impulsionam, jogam-se contra a madeira que range de dor. Como se absorvesse a dor da saudade que não a deixa jamais. E na crista das ondas os fantasmas deslizam em suas pranchas triunfais. E nas pranchas, sobre a crista das ondas, continuam sua dança que não cessa de ser dança, que não cessa de marulhar.

Olhos molhados de lágrimas quentes e úmidas misturam-se às gélidas águas que os ventos sobre o rosto lhe jogam. É de saudade esta lágrima que escorre de dentro da alma? Seria ela, a saudade, que a faz ver estes fantasmas que insistem em perambular pelas névoas de sua mente, brincando com ela nos momentos mais diversos de seu diário caminhar?

O clarão dos relâmpagos não cessa. Fantasmas dançam em suas linhas de fogo. Fantasmas dançam entre as linhas que se quebram entre os píncaros da serra. Fantasmas dançam dentre as linhas destes raios que se entrelaçam no espaço e flanam entre elas nesta dança que não cessa de ser dança, neste infindo chamejar.

Fantasmas perambulam ante os seus olhos tristes. E tristes a olham. Fantasmas que entre negras nuvens deslizam, tentam enxugar a dor que veem em seu olhar.

Encharcada na noite de trevas, coberta com as vestes da noite de lua, pesam-lhe as pernas e ela continua estática no mesmo local, vestida também com as cores nebulosas de sua memória. E os trovões que ribombam quase a seus pés e os relâmpagos que clareiam as pedras à sua frente não inibem a transposição das lembranças que circulam entre as tênues linhas que separam a concreta consciência do absoluto abstrato de um reluzente mundo, que se fez distante, apenas na névoa do tempo. De um reluzente mundo, que ela vê e sente tão nítido nos momentos todos em que os sons do seu enlevo só lágrimas vertem no acalanto da hora.

Num repente juntam-se os fantasmas todos num clarão distante. No instante, que parece mágico, no instante em que de sua dor ela se distancia ao ver o fogaréu que do céu avança. Um fulminante raio que transforma os diáfanos mantos dos fantasmas que tanto a aturdiam, em mantos de fogo. E os fantasmas, na distância, dançam mais uma dança que jamais cessa de ser dança e que jamais cessar de queimar. Envolvem o horizonte além e engolem, em chamas, o pinheiral que em verde debruava as serras distantes. Em meio ao fantasmagórico céu ela vê o raio que cinde a araucária imensa, em intensa vertical, de cima a baixo, como se fosse uma serra descomunal.

E nesse instante os canhões que vomitaram bombas em todas as guerras unem-se ante o seu aturdido olhar para despejar o fel, que sobrou dos tempos de horror, sobre o lago, sobre as colinas, sobre a floresta. Um rugido intenso, como se todas as feras enjauladas no mundo, rompessem todas as grades e todas as correntes e voassem em torno do universo, soltando um urro de liberdade, foi o que se ela ouviu.

Tudo passa tão rapidamente que num instante voltam os fantasmas, novamente, em seus diáfanos mantos vestidos. E olham para ela, uma vez mais, com seus tristes olhos, como a lhe dizer que tentaram queimar a dor e a saudade que há tanto a sucumbe.

E eles continuam com sua dança que não cessa de ser dança e que não cessa de queimar.

A tempestade continua a sua volúpia entre as árvores, entre as águas do lago, a varrer, com fúria o mundo por onde passa.

E em meio a ela sente que o seu amor lá está. Em meio àquele turbilhão. Como se de lá acenasse, sorrisse, cantasse e contasse … Ah! Os poemas do amor espalhados pelas nuvens, mesmo plúmbeas, pelos relâmpagos desta sua imaginária tempestade…

No avarandado da cabana ela sente a esperança de ver o abstrato livremente fluir entre os raios e trovões, pelo chão onde escorrem estas águas que do infinito emanam nas noites tristes da alma.

Ah! Ela jamais se esquecerá dos poemas de seu pobre amor, de seu tão maltratado, tão vilipendiado, tão sofrido, tão enterrado amor dentro de sua abstrata alma corroída nos espasmos depressivos que a sua vida envolveu.

Os fantasmas continuam lá fora, em meio às aguas que não cessam de cair, olhando-a com seus olhos tristes. Seriam estes fantasmas os olhos do amor que brilham nas noites das tempestades da alma?  Seriam estes fantasmas os olhos do amor que brilham em meio aos relâmpagos que clareiam os céus nas noites de tempestade?

Reclinada ainda sobre o peitoril da varanda, encharcada das águas atiradas pelas negras nuvens, fica a olhar os raios que riscam os céus e incendeiam e cindem as araucárias distantes.

Face molhada pelas águas da chuva, face molhada pelas lágrimas que de seus olhos não cessam de rolar, pede às estrelas ausentes que lhe digam por que estes raios que queimam e destroem estas árvores não queimam e não destroem também esta saudade?

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