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abril

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2024

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Entre o amor e a ciência (II)

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Entre juras de amor eterno passaram a noite sobre os pelegos de carneiro estendidos diante da lareira

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Mariana desembarcou na rodoviária da Ilha da Magia em esplendente manhã de sol. Tomou um táxi que a levou ao endereço onde morava uma família conhecida de seus pais. Foi muito bem recebida. Passou a manhã com eles. As aulas na Faculdade teriam início apenas dois dias mais tarde. Ajudaram-na a encontrar um local perto do Campus da Universidade, onde pudesse residir sem a preocupação diária de se locomover de um lado para outro.

 

 

 

O bairro da Trindade, naquele tempo, não era tão densamente povoado como agora. E lá foi ela viver em um antigo casarão. Com muitos quartos para serem alugados para as estudantes universitárias. O cômodo que lhe coube era bem pequeno. Ficava na parte dos fundos, com vista para o quintal — que a dona chamava de rua —, com uma cama simples, um armário, uma mesinha e uma cadeira.

 

 

 

— O café da manhã está incluído na mensalidade. — Foi explicando dona Margarida. — É bem simples. Café com leite e pão de padeiro com manteiga ou doce, Se quiser algo mais, é por sua conta. As outras garotas que moram aqui sempre fazem as demais refeições no RU, o restaurante universitário. Mas você precisa correr logo lá para garantir uma vaga porque é muito concorrido.

 

 

 

Mariana de pronto percebeu que dona Margarida era de poucas palavras. O que achou muito bom. Não gostava de se prender em longas conversas. Atrapalhariam seu tempo de estudo.

 

 

 

Arrumou seus poucos pertences no armário e na mesinha, seus livros e cadernos. Despediu-se do casal amigo de seus pais que a acompanharam para resolver seu primeiro problema. E saiu em rumo ao Campus, em busca do local onde estava instalada a Faculdade de Farmácia. Apresentou-se na secretaria. Preencheu os formulários de praxe e recebeu uma agenda com o horário e local onde seriam ministradas as aulas teóricas e práticas. Informou-se sobre o restaurante universitário. Conseguiu o almejado cartão que, por preços irrisórios, lhe dava o direito de lá almoçar e jantar em todos os dias úteis. Aos domingos e feriados deveria procurar outras alternativas para fazer suas refeições.

 

 

 

 

A esta altura já estava suando em bicas. Não contava com o ardente calor da ilha, ainda em março. Imaginou que deveria providenciar roupas mais adequadas ao clima local. Vivia em região serrana e onde morava até as noites de verão eram frias.

 

 

 

Mas em torno de um campus universitário há de tudo compatível ao bolso de estudantes que vivem às custas de minguadas mesadas. Logo encontrou um brechó onde comprou blusinhas leves e bermudas próprias para enfrentar os meses de calor. A vendedora ainda lhe ofereceu um belo biquíni, jurando que nunca havia sido usado. Mas Mariana não confiou. Usaria roupas usadas, sim. Mas apenas as que não entrassem diretamente em contato com o corpo. Preconceito? Não soube explicar. Mas imaginou que jamais as usaria mesmo que fossem esterilizadas em uma autoclave.

 

 

 

Passaram-se dias, semanas e meses e Mariana continuava enfronhada em seus estudos. Apaixonada por todas as matérias. Quando deu por si lembrou-se que não pensara um dia sequer em Guilherme. Resolveu enviar-lhe uma carta. Imaginou que poderiam se encontrar nas férias do meio do ano. Descobrira que não precisaria desembarcar em Canoinhas, pois o ônibus iria até Porto União. Quem sabe ele poderia esperá-la no ponto de confluência entre a estrada, que segue no sentido das serras do Tamanduá e a rodovia estadual.

 

 

 

Não houve tempo para esperar a resposta, pois dentro de dias ela já deixava a ilha. Não sabia se ele recebera a carta, se estava ainda por lá, se estaria a esperar por ela. Sabia que não ficaria a sós naquela manhã de sua chegada. Perto moravam amigos que a levariam mais tarde para casa.

 

 

 

Desembarcou no local do entroncamento. No luso fusco da manhã enevoada viu as lanternas acesas de uma caminhonete preta. Ao lado, Guilherme, que correu para recebê-la em seus braços. Parecia que fora na véspera a última vez em que se viram. Um abraço que aqueceu as almas saudosas de um afago, de um afeto. Os campos estavam cobertos de fina camada de um gelo branquinho. Era a hora da lua despedir-se da terra.

 

 

 

Embarcaram no aconchego do carro. E partiram rumo às serras. Mas Guilherme não entrou na estradinha que levava para o sítio dos pais dela. Continuou pela íngreme subida, entrou na propriedade de sua família e continuou a subir colinas e mais colinas até chegar a um ponto, onde o nevoeiro não tinha vez, e encontraram os raios do sol a turvarem a visão.

 

 

 

Estacionou defronte à velha cabana de seus mais sonhados encantos. Um fogo aconchegante na lareira a crepitar. Um café quentinho, com leite recém-ordenhado. O saudoso pão caseiro com dourada manteiga a derreter-se sobre ele.

 

 

 

Passaram o dia todo, juntinhos, agarrados, como se desde a última vez nunca se tivessem separado. Cavalgaram pelas serras. Comeram pinhão sapecado em fumegantes grimpas de pinheiro. E entre juras de amor eterno passaram a noite sobre os pelegos de carneiro estendidos diante da lareira.

 

 

 

Aquele mês de férias passou voando. Mariana dividia-se entre seu amor e sua família. Quando teve que ir embora ele a levou até Mafra. Onde ela tomou o ônibus com destino à capital. Queria levá-la até o seu destino, mas ambos sabiam que cada um deveria seguir seu rumo.

 

 

 

Assim passaram-se os três anos do curso. Enquanto Mariana aprofundava-se em seus estudos, Guilherme não existia para ela. Quando se encontravam, não conseguiam se separar. Parecia ser um amor feito de pele. E de arrepios.

 

 

 

No dia da formatura, lá estava ele com seus pais e os pais de Mariana, a acompanhá-la em todas as solenidades. Queria noivar. Queria selar logo esta união. Ela quase o desmoronou ao dizer-lhe um quase gaguejante não.

 

 

 

 

Planejara um mundo à parte. No ano seguinte cursaria Bioquímica e já estava matriculada em um curso de pós-graduação. Depois, o mestrado.

 

 

Guilherme engoliu a recusa. Momentaneamente. Não a deixaria. Junto com os amigos da família dela jantaram em um restaurante italiano que ficava mais além da praia dos ingleses.

 

 

 

No dia seguinte, o baile de formatura. Em um clube muito especial com vista para a Lagoa da Conceição. Guilherme encantado com a ilha. Já queria abandonar a fazenda nas serras e vir morar com ela em uma cabana junto ao mar.

 

 

Mas a vida continua. E ao findar o baile os pais de Guilherme já foram avisando que só iriam dormir um pouco e em seguida encetariam a longa viagem de volta. Que naquele tempo durava mais de sete horas nas terríveis estradas ainda pouco pavimentadas.

 

 

 

Lógico que Guilherme fez o que pode para mais tempo permanecer com ela. Inventou um problema na embreagem da caminhonete e disse que precisava levá-la em uma oficina. Problema que só ficou sanado quando o sol já se despedia no horizonte. E assim ele conseguiu passar mais uma noite ao lado dela. Levaram os pais de Mariana até a rodoviária a fim de pegarem o ônibus da noite para retornar aos seus pagos.

 

 

 

Ela não foi embora logo. Precisava devolver toda aquela indumentária que alugara para as cerimônias de formatura, acertar a documentação na secretaria da faculdade, fazer as inscrições para os cursos que fervilhavam em sua mente.

 

 

 

Para ajudar a se manter, desde o ano anterior, ela dava aulas de biologia em um cursinho preparatório para o exame vestibular. Teria, portanto, no máximo, uma semana de férias, entre o Natal e o Ano Novo.

 

 

 

Novamente, mesmo que por poucos dias, passavam horas em total abandono pelas serras alcantiladas e noites apaixonadas sob a luz luxuriante do fogo de uma lareira.

 

 

No ano seguinte, bem como nos que se sucederam, Mariana conseguiu dias maravilhosos de férias. Os estudos, a pós graduação e depois o mestrado envolviam-na em todas as horas do dia e em todos os dias do ano. Estava encantada com o que fazia, com suas experiências, com as novas descobertas e os novos caminhos que, a dia após dia, a ciência lhe mostrava.

 

 

 

Mudara-se para um apartamento à beira mar, junto com mais duas colegas. Sentia-se mais livre. Parecia-lhe que ali a vida fluía melhor. Agora a vista de sua janela era para o mar e não mais para um quintal desarranjado e desprovido de poesia.

 

 

 

 

Conseguira uma bolsa integral, já no curso de pós graduação. Não havia, mesmo, como continuar mais com as aulas no cursinho. Não lhe sobrava tempo nem para ir a um cinema. E quando ia, dormia durante a apresentação do filme.

 

 

 

E Guilherme? O que fora feito de Guilherme? Ela apenas o via nos poucos fins de semana quando, para as suas plagas, ela fugia. Sentia-se como uma estranha longe dele, Mas apenas nos momentos em que não estava enfiada em meio aos bichinhos que estudava no laboratório da universidade. Com ele ela estava em casa, em um ninho, em um céu sem limites.

 

 

 

Ele esteve presente, novamente, com seus pais e os pais dela, na conclusão do curso de Bioquímica e em sua pós-graduação. Foram duas solenidades mais simples, sem muita festa, sem baile. Apenas a entrega dos diplomas e um jantar no mesmo restaurante italiano que fica no fim da praia dos Ingleses.

 

 

 

Na conclusão do mestrado foram vê-la apresentar sua dissertação. E brindaram, com um espumante italiano, ao seu sucesso.

 

 

 

Guilherme imaginava que agora bastava de tanto estudo. Encostou-a na parede.

 

 

 

— Se você não se casar comigo, não sei o que farei. Uno-me com a primeira mulher que se jogar em meus braços.

 

 

 

— Guilherme, tens uma vida inteira pela frente, já traçada e decidida por teus pais. Eu decidi a minha. Já estou inscrita na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde farei meu doutorado. Lá ficarei fechada, pelo menos nos próximos quatro anos, se tudo correr bem. Se quiseres esperar e seguir a vida comigo, depois conversaremos. Se não, desejo que encontres mesmo alguém que te faça feliz.

 

 

 

Ainda passaram alguns dias juntos — antes que ela embarcasse para a cidade maravilhosa—, a vagar pelas serras, a se enrolarem, deitados naqueles tapetes de lã de carneiro, defronte à lareira acesa.

 

 

(Continua)

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