quinta-feira, 28

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março

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2024

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Avati encontra a luz de sua vida

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Queria que ele sentisse o amor de seu pai a envolvê-lo como se estivesse no colo de sua mãe

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Passaram-se muitas luas desde o dia da tragédia que levou Anahi a conhecer as flores das campinas eternas. Avati, seu curuminzinho recebeu todos os cuidados das mulheres da taba. Uma, em especial, tornou-se sua mãe de leite. Que se desvelou em amamentá-lo durante mais de dois anos.

 

 

 

Abaetê permaneceu na tribo. A família de Anahi era a família dele. No começo lançou-se, como um louco, mata adentro, onde passava dias quase sem se alimentar. Mas um dia o desespero começou a amainar. Parecia-lhe que as árvores, os pássaros, os animaizinhos da floresta estavam o tempo todo a transmitir-lhe a medicação enviada pelos deuses do espaço e as suas angústias já não eram tão intensas.

 

 

 

Não poderia deixar seu filhinho, tão tenro ainda, ser cuidado apenas por estranhos. Não era justo que a mãe de Anahi e a velha Uietê Atipó tivessem mais esta responsabilidade.

 

 

 

 

Semanas haviam se passado quando ele voltou. Estava magro, quase sem cor. De olhos baixos e amargurado pediu perdão ao cacique e aos velhos anciões da tribo, pela sua covardia, pela sua fuga intempestiva. Sabia que aquela atitude não fora bem vista entre os guerreiros.

 

 

 

 

Aos poucos entrosou-se novamente com os membros da taba. Madrugava sempre. E logo tomava seu pequeno Avati em seus braços. Queria que ele sentisse o amor de seu pai a envolvê-lo como se estivesse no colo de sua mãe.

 

 

 

Os amigos de Abaetê vieram um dia mostrar-lhe o vulto que há tempos viam sentado nas barrancas da outra margem. Um índio encurvado que andava de muletas, mancando em uma perna só. Sabiam quem era ele. Tinham quase certeza de ter sido aquele aleijado da outra banda o assassino de Anahi. Porque tudo o que conseguiram captar em suas andanças em busca do bandido, davam em torno dele. Mas não conseguiram provas. Nunca tiveram certeza. Sami tinha sumido da taba e retornou para casa já inválido.

 

 

 

 

Abaetê voltou ao trabalho usual da tribo. Saía com os jovens em busca de caça. Ensinava-os a arte de montar um arco. De escolher a madeira certa das árvores certas. A fazer flechas com agudas pontas de ferro. A envolver estes instrumentos com embira colorida que trançavam das mais variadas formas.

 

 

 

Faziam exercícios diários de pontaria. Treinavam tanto que já conseguiam atingir um alvo em longa distância. As flechas alcançavam grande altura e depois, em alta velocidade, ainda, desciam em direção a um ponto distante previamente demarcado. Desta forma surpreendiam os veadinhos a correr pelas campinas.

 

 

 

 

Aos poucos conseguiram adquirir armas de fogo iguais à dos brancos. Esmeraram-se tanto que não perdiam mais munição.

 

 

 

Abaetê já se sentia mais feliz. Tornara à sua antiga forma física. Vivia apenas para Avati. Ensinou-o a conhecer o tempo de se alimentar, de dormir e de acordar apenas olhando para o céu. Pela posição do sol, da lua e das estrelas. Ensinou-o sobre as mudanças do tempo. De quando as matas e as campinas se enchiam de flores. O tempo do calor que era quando os dias se tornavam mais longos. O tempo em que as folhas de muitas árvores amareleciam e depois caiam ao solo. Para que ele soubesse que logo chegaria o tempo do frio em que as noites eram mais longas que os dias.

 

 

 

Avati cresceu cercado do carinho e das honras que só se davam a quem algum dia seria o cacique da tribo. Anahi era a única filha do chefe Cauê. Pela tradição da tribo Avati seria a autoridade máxima que os conduziria no momento em que Tupã decidisse deixar vago o assento principal.

 

 

 

 

Avati tornou-se um exímio arqueiro e ninguém conseguia atingir uma ave em pleno voo com as munições de um fuzil como ele. Em poucos anos estava já com a altura e a envergadura de seu pai. Do avô herdara os olhos de lince. Da mãe, Anahi, a suavidade no falar e no respeito aos mais velhos, aos milagres da natureza, à arte de criar, com suas mãos os mais belos vasos de cerâmica, os mais belos cestos de bambu. Esmerava-se em fazer, corretamente, tudo o que os maiores lhe ensinavam. Sabia que os tempos de seu avô correr atrás dos pássaros nas campinas eternas não estavam longe.

 

 

 

 

Certa noite Abaetê, o cacique Cauê e os anciões da tribo reuniram-se em polvorosa. Mais sentiram o drama do que viram. Apenas uma das velhas índias que estava a catar lenha perto do Rio Negro viu Avati na outra margem a conversar com um alquebrado que andava de muletas. Ao lado dele uma jovem índia muito linda. Parecia que todos os trovões do paraíso desabavam sobre eles. Precisavam descobrir o que se passava. Tudo o que foi ali falado deveria permanecer em segredo. Jamais Avati poderia ficar sabendo das apreensões que tumultuavam a mente dos mais antigos.

 

 

 

 

Encarregaram alguns dos guerreiros, amigos de Abaetê, para desvendar o mistério. Que não fosse o mais temível. Um medo a percorrer a espinha de todos. O medo de que Sami ousasse, em alguma emboscada, com os seus companheiros, a dar cabo de Avati. Ou… que ele se apaixonasse pela filha daquele infeliz.

 

 

Demoraram dias para entregar uma resposta. Não poderiam atravessar o rio e dar, diretamente, no ponto em que Sami costumava ficar. Subiram pela margem, por uns bons quilômetros, até encontrarem uma curva e só então o atravessaram. Encontravam-se nas terras da outra tribo e todo o cuidado era pouco. Rastejaram, junto à margem, como serpentes, até chegarem próximo ao ponto em que Sami costumava ficar. Como não era em todos os dias que ele se dirigia para o rio, tiveram que se acomodar, em silêncio, em seu esconderijo por mais tempo do que planejavam. Até que ouviram o andar coxeante de alguém e das muletas em seu contato com o solo. Perto dele uma jovem índia tão linda como eles nunca tinham visto ainda na vida.

 

 

 

Ficaram à escuta. À distância não conseguiam distinguir o que falavam. Um deles, o mais afoito e que melhor rastejava sem fazer ruído, aproximou-se mais. E viu quando Avati cruzou o rio a nado. Respirou fundo para reprimir o quase grito de susto.

 

 

 

 

Não tinha certeza do que ouvia. Tinha medo de ser traído por seus ouvidos. Mas podia ter certeza que a moça não tratava a Sami como se trata um pai.

 

 

 

Foi neste momento que Avati saiu da água e ela correu ao encontro dele. Os dois olhavam-se a sorrir. O rastreador chegou a ouvir os risos altos de ambos. Os jovens se davam as mãos.

 

 

 

Nada mais pode relatar, na volta, para Cauê, para os anciões, para Abaetê. Apenas o que deduzira. Que a moça não era filha de Sami.

 

 

 

—Mas o que ela faz lá na beira do rio ao lado dele? Sami deve saber que aquele rapaz que vai ter com ela é Avati. Algo de terrível ainda pode acontecer.

 

 

 

Mas Sami já não era o mesmo índio cheio de vida de antes. A intensa dor física liquidara toda a sua impetuosidade. A dependência de muletas e do auxílio dos outros para locomover-se deixou-o em profunda prostração. Mas a dor que roía seu cérebro desde o instante em que soube que matara Anahi era a dor que mais fundo doía em sua mente. Não deixava de pensar na bondade das freiras e dos médicos que o atenderam. Na devoção do amigo Aníbal para ajudá-lo a viver.

 

 

 

 

Ficava na beira do rio a ver a água a correr. Inebriava-se com aquele contínuo movimento das águas. Cismava sobre aquelas águas que agora estavam ali e dali a pouco já uns metros mais adiante até se perderem na curva do rio. Juntava flores silvestres que, em pencas vicejavam ao redor, em todas as primaveras. Colocava-as em seu arco e atirava-as para dentro do rio. Embevecido ficava a ver a graciosidade das pétalas coloridas sumirem, ao longe, de sua visão. Quantas vezes pensou em seguir aquele mesmo caminho e nunca mais voltar… Talvez, assim, as suas angústias sumissem também…

 

 

 

 

A angústia maior Sami não contara a ninguém. Nem a seu pai. Tinha vergonha e receio de ser renegado para sempre. Entre tantas angústias que lhe ruminavam a alma havia algo a mais que fazia com que perdesse o sono. Que travava todo o seu eu. Que tantas vezes o impedia até de se alimentar.

 

 

 

O velho pajé, percebendo que a cada dia ele ficava mais arredio, chegou perto e falou-lhe baixinho, quase sussurrando:

 

 

 

 

 

—O que o moço esconde de todos e até do cacique, não esconde do velho pajé que tudo sabe e tudo vê.

 

 

 

O susto de Sami foi tão grande que quis sair correndo.

 

 

 

—Não filho, não precisa se esconder. O velho pajé não conta pra ninguém as agruras      que vê por aí. Não se preocupe. O que não tem solução, Tupã diz que solucionado está. Sami não pode casar. Sami não vai poder deitar nunca mais com mulher nenhuma. Sami nunca mais vai dar um herdeiro para comandar esta tribo. Mas Tupã mandou de presente pra nós aquela moça linda, Indaíra, que é filha e neta de grandes chefes de grandes nações como a nossa. Ela poderá guiar nosso povo. Ou algum filho dela.

 

 

 

Sami já saíra da Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba com este diagnóstico secreto. Que não confidenciara nem para seu grande amigo Aníbal. O Médico que lá o atendera, Dr. José, levara-o, certa tarde, a um canto no jardim. Sentaram-se em um banco sob frondosa árvore. Começou a fazer rodeios para lhe contar uma das piores consequências, senão a pior da gangrena que já levara quase todo um de seus membros inferiores.

 

 

 

—Doutor José, não precisa fazer rodeios, eu já pressenti que além de inválido nunca mais poderei dormir com uma mulher. Que não poderei ser pai. Pior, muito pior que perder uma perna. Eu só não tinha certeza. Mas com o correr dos dias aqui no hospital percebi que estou fadado a ter uma vida solitária.

 

 

 

 

O que o pajé lhe falou não era novidade para ele. Algo em seu íntimo lhe dizia que quando seu pai se fosse não seria ele o escolhido a chefiar a tribo.

 

 

 

 

Outra tortura maior enchia a mente de Sami, sentado ali à beira das águas que conhecera desde que nasceu. Pressentira a felicidade nos olhos da garota quando via aquele belo rapaz que vinha, a nado, da margem do lado de lá. Via o sorriso de ambos. Via o brilho no olhar de ambos. Só não tinha coragem de perguntar quem era ele.

 

 

 

No fundo pressentia que era o bastardo filho daquele forasteiro que lhe roubara Anahi.

 

 

 

 

Continua…

(Trecho de um livro em elaboração)

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