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março

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2024

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A pandemia e nós, ou os nós da pandemia

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Uma primeira lição (…) é o fato de que somos uma sociedade violenta

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Sandro Luiz Bazzanella*

Luiz Eduardo Cani*

 Ouça uma prévia da coluna

A pandemia de covid-19 é um acontecimento dramático em âmbito mundial. Entre nós brasileiros é um acontecimento com contornos de uma tragédia. Mas, a partir de uma postura panglossiana, talvez possamos nos consolar pensando que quiçá aprenderemos alguma coisa com a “virulência” dos acontecimentos, dos mandos, dos desmandos, dos obscurantismos que constituem a forma como nos relacionamos com a pandemia até o presente momento. Façamos mais este esforço compreensivo, sem, no entanto, alimentar qualquer expectativa de que tal esforço possa contribuir para um entendimento diferenciado, ou ampliado do fenômeno em curso por parte dos brasileiros. Mostras de incompreensão, de má vontade de considerar um argumento adequado, desrespeito pelo conhecimento científico e pelo trabalho intelectual são situações midiaticamente corriqueiras entre nós.

Uma primeira lição reconheça-se já de longa data pesquisada, escrita, proferida por inúmeros historiadores, sociólogos, antropólogos, economistas, intelectuais, entre outros é o fato de que somos uma sociedade violenta. A violência foi a estratégia por excelência da colonização lusitana destas terras. Desencadeada inicialmente contra os povos indígenas, posteriormente contra os negros africanos, para cá deportados na condição de escravos, contra seus descendentes, contra mamelucos e cafuzos.  Na atualidade esta violência se manifesta na ação policial nas favelas, em balas perdidas que recolhem de forma abrupta vidas de pais e mães de família, de crianças, adolescentes e jovens, na execução de pequenos agricultores, de sem terras, de sem teto, de líderes comunitários. A violência se apresenta cotidianamente no assédio contra as mulheres, nos baixos salários, na desconsideração de direitos, no espancamento no interior do lar, ou mesmo até em público e, não raras vezes, na execução das mesmas na barbárie do feminicídio.

Violência que se manifesta numa sociedade dividida em castas sociais e, que anuncia cinicamente, que todos são livres para permanecerem onde se encontram.  Aqui a economia não pode parar, caso contrário, coloca em questão a sobrevivência do vírus.  Numa sociedade em avançado estado de empobrecimento (é só acompanhar a corrosão do poder de compra do salário mínimo a partir da correção anual abaixo do índice de inflação) joga-se com a falaciosa contradição entre economia e vida. Os representantes das castas abastadas vociferam o seguinte sofisma: “Ou protegemos a vida e deterioramos a economia, ou cuidamos da economia e perdemos algumas vidas. Façam sua escolha”. Ora, como se largas parcelas empobrecidas da sociedade tivessem escolha a não ser lançar-se na cotidiana “roleta russa” do contágio potencializado pelas aglomerações no transporte público, nas filas dos bancos, nos supermercados, nas escolas públicas.  Violência que se expressa na retórica que situa a economia como uma transcendência a quem a população deve em sacrífico cotidiano entregar sua vida, sob o desamparo asfixiante orquestrado pelo Estado brasileiro. Insista-se no argumento da violência dos discursos oficiais e de asseclas intelectuais que desconsideram que na própria etimologia da palavra economia (oikos = casa + nomia = leis) a preservação, o cuidado com a vida se apresentam como a razão de ser da economia. E, não se trata de discurso moral, sobretudo para aqueles que ainda não compreenderam que toda e qualquer proposta econômica requer um “morus”, uma moral, uma forma de se posicionar e compartilhar a vida, os bens necessários à sua manutenção, o mundo.

Ou seja, não bastassem as modalidades já tradicionais de violência presentes na sociedade brasileira, a pandemia trouxe-nos novos modos de vilipendiar uma vez mais as vítimas cotidianas. A população é constrangida a lançar-se em meio a um oceano contagioso e virulento para mover a economia de todo o país. As justificativas meritocráticas empurram para os indivíduos a responsabilidade pela própria desgraça, forjando uma situação sem saída. Por um lado, quem não trabalha está de “mimimi”, ou é covarde e não quer fazer a sua parte. Por outro lado, quem precisa se submeter às condições degradantes e desumanas, que eventualmente podem resultar no recebimento de uma pena de morte sem a prática de qualquer crime, é responsabilizado ao adoecer. Tratamentos precoces e outras estultices são propagandeados como se existisse prevenção. Vale tudo, só não vale preservar vidas.

Constituímo-nos como uma sociedade que desconhece o sentido e a importância estratégica da “cooperação”.  Em terras de donatários de capitanias hereditárias, de senhores de engenho, de oligarquias agrárias, de coronéis do campo e da cidade, de indivíduos e famílias portadores de títulos de nobreza, de nomenclaturas que demarcam distinção social (nestas arcaicas e atrasadas terras, juízes, advogados, médicos, políticos, empresários, entre outros são denominados de doutores), de corporações profissionais e, grupos econômicos que protegem interesses corporativos e empresariais em detrimento dos interesses públicos e sociais, reinam os interesses privados sobre os bens e o espaço público.  A ausência do espaço público e, da afirmação dos bens públicos como pertencentes a dimensão pública de uma sociedade, enseja a ausência do exercício da cidadania, do sentimento de pertencimento à uma comunidade local, regional e/ou nacional.  A expressão, na atualidade de civismo e patriotismo de determinados grupos sociais, manifesta cabalmente uma sociedade fraturada e, que não reconhece a si mesma. A polarização política alardeada pelos formadores de opinião pública é expressão de determinados grupos sociais pretendendo impor uma visão particularizada de sociedade e país. A insensatez e o autoritarismo de tais grupos ensejam e almejam os militares governando o país. Sociedades desprovidas da disposição para a cooperação na afirmação da primazia dos interesses públicos é uma sociedade desprovida das condições de possibilidade de trilhar o caminho do desenvolvimento humano, econômico e social sustentável.

A violência que se apresenta nos fundamentos do tecido social brasileiro e se reproduz diuturnamente nas formas acima descritas e, ainda de tantas outras maneiras, encontra-se atualmente diante da deterioração das pautas políticas, das pautas públicas. É a violência das fake news, da mentira, do descaso, da grosseria, a que o “brasil” da imensa maioria dos brasileiros está submetido por lideranças políticas e, instituições por elas controladas.  O cenário político, jurídico e institucional é dantesco, senão pavoroso, agressivo e humilhante.  A República (a res pública – a coisa pública) foi expulsa do Estado, que passa a ser apresentado em tons fascistas aguçando a sanha autoritária de segmentos sociais ansiosos por um programa de “eugenia social”, de extermínio dos que ainda se atrevem a “pensar”, “a escrever”, a “questionar”. Há indícios de que a queima de livros está se aproximando a passos largos. Último estágio para afirmação do obscurantismo, evidentemente precedido pelo terraplanismo, pela cloroquina e pela ivermectina.

A violência, a humilhação a que o “brasil” dos brasileiros está submetida é de tamanha intensidade e embrutecimento que provoca o imobilismo social.  O filósofo esloveno Slavoj Zizek amparado na psicanálise lacaniana demostra que em certos contextos, quando nos defrontamos com determinada situação, aqui denominada de “Real”, em função de sua absurdidade tendemos a paralisia, seja no plano individual, seja no plano social. Tudo indica que a pandemia nos colocou diante de nós mesmos, de nossa condição “Real”. Não há para onde correr. Não há mais como exportar responsabilidades para fulano, ou ciclano. Nós somos assim. Nós é que produzimos o “Real” em suas inconsequências e, em suas consequências ao não usarmos máscaras, ao tomarmos cloroquina até fritar nossos fígados, ao apoiarmos interesses financeiros ávidos pelas nossas mortes. No deserto do “Real” não podemos simbolizar, pois a linguagem não dá conta, é insuficiente. Resta o assombro.  A pandemia apenas potencializou a percepção que somos uma sociedade em descompasso com os desafios do tempo presente. Aliás, a pandemia apenas afirma e reafirma cotidianamente que somos um tecido social mal costurado, fraturado, parte significativa dele, senão a maior parte dele surrado, empobrecido e, sem condições de alcançar consistência em sua totalidade.

E segue o vírus circulando livremente incentivado pelas nossas idiossincrasias políticas e sociais. Mais do que livremente, circula com todo o auxílio possível e imaginável: não temos vacinas suficientes, a população é desinformada cotidianamente para não usar máscara, não fazer distanciamento social e, ainda, para fazer carreatas e aglomerar sem máscaras contra medidas de restrição da circulação indispensáveis ao reestabelecimento dos serviços de saúde. É uma campanha oficial em prol do vírus, contra a vida e contra os pobres. Fazer o quê? Não há leitos suficientes e, mesmo que houvesse leitos, faltariam respiradores e, mesmo que houvesse respiradores, faltaria oxigênio, e mesmo que houvesse oxigênio, os profissionais da saúde estão exaustos, e mesmo que não estivessem exaustos, faltariam outros insumos. Não há o que fazer, melhor pensar que de fato é uma gripezinha, pois parar para perceber o  “Real” nos leva a desistir. A economia não pode parar…

Resta a pergunta incômoda de Primo Levi: É isto um homem? Não ignoremos, contudo, que Levi foi vítima de um movimento nacionalista nazifascista. E os milhões de  brasileiros do “brasil” destituídos, desamparados, vilipendiados pelo Brasil são vítimas do que e, de quem? Refugiados e, exilados na própria pátria, concluamos com a poesia de Gonçalves Dias: Minha terra tem palmeiras,/Onde canta o Sabiá;/As aves, que aqui gorjeiam,/Não gorjeiam como lá./Nosso céu tem mais estrelas,/Nossas várzeas têm mais flores,/Nossos bosques têm mais vida,/Nossa vida mais amores./Em cismar, sozinho, à noite,/Mais prazer encontro eu lá;/ Minha terra tem palmeiras,/Onde canta o Sabiá./Minha terra tem primores,/Que tais não encontro eu cá;/Em cismar – sozinho, à noite,/Mais prazer encontro eu lá;/Minha terra tem palmeiras,/Onde canta o Sabiá./Não permita Deus que eu morra,/Sem que volte para lá;/Sem que desfrute os primores/ Que não encontro por cá;/Sem qu’inda aviste as palmeiras,/ Onde canta o Sabiá. (CANÇÃO DO EXÍLIO – Gonçalves Dias).

*Sandro Luiz Bazzanella e Luiz Eduardo Cani são professores

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